As meninas do campo

Ser jovem no campo tem suas peculiaridades. Ao mesmo tempo em que passar pela adolescência no campo ou na cidade é muito parecido, ser jovem no meio rural tem algo de especial, que quem chega perto pode descobrir. Ser jovem, menina, no meio rural também tem suas diferenças. E é destas que vamos falar hoje.

Infelizmente, é preciso começar pelas dificuldades. O trabalho no campo: plantar, colher, preparar a terra, em várias culturas, em muitos lugares e em outros tempos, foi feito por homens e mulheres. Na realidade, nas sociedades mais primitivas, quando os homens saiam para caçar ou para guerrear, quem ficava em casa com os filhos e plantando alimentos eram as mulheres. A ideia de terra em muitas civilizações está vinculada à figura da mulher: “a mãe terra”.

Porém, desde a Antiguidade, quando as famílias foram tornando-se patriarcais, ou seja, chefiadas por homens, a gestão da família, assim como da propriedade passou a ser dos homens. Dizia-se na Grécia antiga que o homem era cidadão da polis, parte da comunidade de homens, quando possuía bens, que eram as mulheres, os filhos, os escravos e os animais. De uma geração para a outra, eram eles que herdavam a terra e os bens que estavam sobre ela.

Herdamos esta parte triste da evolução social. Nossas famílias por muito tempo têm sido chefiadas por homens, ainda mais no meio rural. Como são os gestores da casa, da propriedade e do dinheiro da família, as mulheres acabam ficando em uma posição subalterna.

É claro que existem resistências, movimentos que em todos os tempos têm afirmado a igualdade entre homens e mulheres, famílias em que a mulher é quem dirige, propriedades rurais em que quem trabalha é a mulher, ou mulheres que dividem as tarefas com os homens. Mas estas situações chamam a nossa atenção exatamente por que ainda são exceções.

Crescer menina no meio rural é um pouco mais difícil do que crescer menino e também um pouco mais difícil do que enfrentar as dificuldades relacionadas à dominação de gênero no contexto urbano. Isso porque a tradição no campo ainda é maior e a resistência às mudanças amplia os obstáculos a serem vencidos.

Em muitos lugares do mundo, ainda hoje, as meninas não tem direito a herdar a terra e muito menos gerenciar a propriedade. Muitas vezes não é considerado necessário que as meninas estudem e muito cedo casam-se, não raras vezes com homens muito mais velhos. E isso não é culpa delas: a perspectiva de uma menina no meio rural, sem estudo, é casar e ter filhos. Sair do domínio do pai para o domínio do marido.

É claro que a realidade do interior da Região Sul do Brasil não é exatamente assim como descrevi, isso diz respeito a outros lugares e países onde a condição feminina é ainda pior. Mas contamos com elementos do que foi descrito. É como se ao descrever aquilo de mais grave que ainda acontece do século XXI em vários lugares, projetássemos tal realidade em um espelho meio distorcido, onde podemos reconhecer também nossa realidade meio distorcida: muitas meninas param de ir a escola cedo, por falta de oportunidades, ou porque na família o estudo para as mulheres ainda não é considerado importante, outras tantas casam cedo e têm filhos. Outras vão para a cidade e, como era muito comum até os anos 80 do século XX, ainda hoje vão trabalhar como domésticas em casas de família em troca de baixos salários, só pela oportunidade de estudar ou de sair de casa. A violência doméstica contra as mulheres e as crianças atinge índices assustadores todos os anos. E o feminicídio, desde que foi definido assim na Lei, em 2015, só vem crescendo

Isabel Allende, importante escritora chilena, que escreve muitos romances em que as protagonistas são mulheres de diferentes realidades, costuma dizer que precisamos oportunizar estudo para as meninas, como uma grande prioridade da sociedade: uma mulher com estudo tem opção e não precisa submeter-se a vontade ou à violência de um homem. Se investirmos nas meninas e elas crescerem como pessoas, crescerão também seus filhos e a família toda. Se as famílias vão bem, a comunidade toda vai bem.

Um dos objetivos da Organização das Nações Unidas (ONU) para o milênio é elevar o nível de escolaridade das meninas. Isso é muito importante! Deve ser um objetivo de todos: governos, empresários, comunidades e famílias.

Visto sobre outro ângulo, se quisermos reduzir os altos índices de violência doméstica também precisamos que as mulheres tenham opções e que seus filhos tenham condições de crescer em ambientes protegidos. Se nossa preocupação é combater a violência nas ruas, as crianças precisam crescer em ambientes de comunicação não violenta, usando mais a palavra e menos outros modos de relacionar-se, este um modo de ser feminino. Não se trata, portanto, de atender apenas a reivindicações das mulheres, mas de compreender as mudanças nas relações de gênero como um objetivo de todos.

É claro que a educação sozinha não vai resolver. As bases patriarcais da sociedade precisam ser modificadas e isso requer que também os homens sejam protagonistas na construção de outros tempos e exerçam seus papeis masculinos de outro modo: novos pais, novos filhos, novos maridos. Isso já vem acontecendo, aos poucos, lentamente, mas está acontecendo.

No meio rural temos visto exemplos de meninas protagonistas, como as que integram as turmas de aprendizagem do Instituto Crescer Legal. Muitas vezes, lideram os grupos, pensam, produzem, realizam seus projetos. E também são respeitadas pelos seus colegas meninos.

No projeto “Nós por Elas, a voz feminina do campo”, a cada programa de rádio que realizam demostram o quanto estão crescendo e como estão contribuindo com a mudança de entendimento da comunidade sobre temas importantes, como o combate ao trabalho infantil, a violência contra as mulheres ou o trabalho feminino.

Nosso desafio é multiplicar a voz delas. Amplificar o que estão nos dizendo e potencializar cada vez mais suas oportunidades. Elas estão abrindo seus caminhos e podem fazê-los. A sociedade pode ajudar, valorizando a caminhada e, quando possível, removendo os obstáculos que sejam intransponíveis.

Colunista

Ana Paula Motta Costa

Advogada, socióloga, mestre em Ciências Criminais (PUC/RS), Doutora em Direito (PUC/RS), Professora do Curso de graduação, Mestrado e Doutorado da UFRGS e Professora do Curso de Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter. É pesquisadora há vários anos na área dos direitos das crianças e adolescentes, com vários livros e artigos publicados em periódicos científicos. É consultora do Instituto Crescer Legal para a área de aprendizagem de jovens rurais e combate ao trabalho infantil.