O fumante em paz

17 . SET . 2012 Saiu na mídia

Para evitar que as más línguas amarelas venham denunciar minhas intenções com este texto, esclareço, logo, que me refiro ao fumo de tabaco, muito embora os textos controversos sobre maconha hoje abundem nas páginas de jornais, gerando debates os mais doidos e doídos.

Defender o uso de maconha, atualmente, é fácil e, por vezes, até recomendável pela lógica não só das liberdades individuais, mas do liberalismo econômico mais avançado e vanguardista da escola de Chicago.

Difícil, mesmo, é defender o uso de tabaco, essa droga insidiosamente cancerígena, causadora de impotência aguda, infarto prévio e tudo o mais, grande vilão num mundo de consumo, de resto, altamente saudável.

Ironicamente, o uso de tabaco, assim como o de Ovomaltine, é um direito, enquanto o de maconha é um delito ainda grave.

Mas isso é outra coisa.

O que pretendo dizer está engasgado em minha garganta pós-limpa de ex-tabagista que parou de fumar há 17 anos. Digo: o fumante de tabaco, hoje, está no nível mais baixo de prestígio social. É mais discriminado que um usuário de crack.

Afinal, o craqueiro é um desgraçado, um infeliz abandonado, vítima das convulsões socioeconômicas, da desigualdade, dos mandos e desmandos da selva metropolitana, da lógica inclemente dos piores barões do tráfico e dos milicianos mais desumanos.

Já o tabagista é um pilantra da pior espécie: um assassino de criancinhas indefesas, um chato incômodo, um patife que se levanta a cada cinco minutos da mesa de bar para cuspir sua fumaça tóxica na cara do guardador de automóveis, que está lá na sua paz, a respirar avidamente cano de descarga de carro de playboy na noite de neon.

Para equilibrar essa injustiça, vou confessar o inconfessável: sinto pena dos tabagistas, não pelos riscos que correm em decorrência do seu vício, mas pelo bullying que sofrem.

O que mais querem do fumante? Ele já renunciou a fumar em restaurantes e leva esporro até quando fuma na calçada.

Nas empresas, são confinados em fumódromos, que antes eram áreas mais ou menos agradáveis, mas estão, progressivamente, se transformando em câmaras de fumaça minúsculas do tamanho de elevadores, onde uns 20 viciados se acotovelam e são obrigados a fumar, além dos próprios cigarros, as emanações dos cigarros alheios, pois têm mais é que morrer mesmo, esses filhos do demo.

Não vejo esse ódio todo dirigido, por exemplo, aos bebuns. Esses são vistos como santos, pois tudo que fazem é encher os cornos com o fruto da vinha, abençoado desde tempos bíblicos.

Verdade que têm de enfrentar a Lei Seca, mas quem se preocupa com isso desde que o Twitter passou a prover os serviços mais sérios e honestos de despiste da fiscalização?

Por algum motivo que me escapa, o tabaco em cigarros (pois os charutos, os cachimbos e o rapé têm status bem mais respeitável) é visto como vício dos infernos, enquanto outros vícios igualmente lícitos são contemplados com ternura e saudados com risadas de hiena.

As intoxicações por cafeína, por exemplo, são não apenas praticadas a granel no ambiente de trabalho, mas estimuladas como hábito motivador de produtividade. Alguém já viu, em alguma empresa do país, uma campanha de comunicação interna incentivando os funcionários a beberem menos café? E, entretanto, o excesso de cafeína, conforme qualquer psiquiatra pode atestar, produz surtos de ansiedade graves, capazes de gerar um tipo de violência que, a olhos nus, passa por inexplicável.

Os quilos de chips industrializadas, o Lexotan, os energéticos destruidores de estômagos, os hambúrgueres de fast food, as porcarias açucaradas de todos os tipos, sem falar no consumo cultural compulsivo de bobagens e da aderência doentia às redes sociais, tudo pode ser visto como questões de saúde pública ou pautas para reportagens.

Pode-se alegar, e é verdade, que o fumante lesiona o outro e expõe o próximo a emanações tóxicas (isso quando é permitida sua presença, pois hoje em dia isso é raro).

Mas… e o ronco porco do automóvel? E o maníaco digital, com seu isolamento e sua compulsão a expor os outros ao ridículo?

O fumo é um hábito como qualquer outro. Respeitável. Uma vez limitado o cigarro a certos ambientes, é preciso que se deixe o fumante em paz, e que se pare de lhe passar esses sermões datados que informam aquilo que já está mais do que sabido.

Parei de fumar há quase duas décadas, mas gostaria de voltar um dia. Talvez volte. Gosto do gesto e do gosto.

Não voltei ainda porque hoje, quando arrisco um cigarro extemporâneo, fico tonto e tenho náuseas, o que me tira a vontade de insistir. Mas quando estou com um fumante, faço questão de continuar em sua presença, solidário e amigo.

Ele tem o direito de pitar seu fumo. De intoxicar-se o quanto quiser, de engolir a fumaça com prazer cinematográfico, de viver a seu modo e de morrer, se assim o desejar.

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